quinta-feira, 22 de setembro de 2016

Sina Nossa


 


É quando o engasgo trava a voz em verdades chispantes. Um bolo amargo vai se formando no estômago. Coração acelera. Respiração descompassa. A visão fica turva. Realidade se confunde. Você sabe que não é real. No fundo você sabe. São as dores do mundo se manifestando, viscerais. Mas você não consegue controlar. A morte é iminente. Há um tremor que te paralisa. Os minutos passam e você sabe que vai ter de lidar com isto. Logo tudo voltará ao normal. Aguente firme, a vida vem te resgatar. Sempre vem. Você sabe.

Às vezes você suporta essa fúria com a leveza de um anjo. No primeiro sinal desse medo insano, antes que aquele turbilhão de sensações destrutivas domine sua mente e seu corpo, você respira fundo. Não. Não é real! E a dor se esvai. E o medo se esvai fugidio como serpente covarde que errou o bote.
Esse medo é um monstro que te consome. Pior do que aqueles que você acreditava existirem embaixo de sua cama enquanto você aguardava a chegada de Morfeu nos tempos de infância. Distorce suas visões, altera seus sentidos, te reduz a pó. E em pó, você escreve. Paradoxalmente livre. Paradoxalmente em paz...

“Posso ser um anjo, um louco, um monstro. E, de tanto em tanto, bem muito eu queria! Visões distorcidas fazem a gente sonhar. E sonhar é tão bom...”

terça-feira, 6 de setembro de 2016

Sobre coisas da Vida e a Morte


 


Eu nunca estudei não senhor, doutor! Há setenta anos eu era moleque e essa cidade aqui era um mato que só vendo! A escola mais próxima ficava na capital. Era quase o dia inteiro no lombo do cavalo pra chegar, imagine! Mas eu era menino curioso e acabei aprendendo a ler com a dona Maria, esposa do coronel Valério que era dono de mais da metade das terras dessa cidade.


Quando escurecia, a luz da lamparina clareava as folhas do punhado de livros que eu levava pra casa. E eu gostava era demais das poesias do Bernardo Guimarães! Pense, doutor! Um molequinho matuto que nem pelo tinha ainda, lendo:

“ Pelo campo etéreo voga 
Qual piroga 
Cortando o cerúleo mar.” *


 Não entendia era nada daquele palavreado todo, mas achava bonito aquele jeito esquisito de falar das coisas da vida. Pena foi a dona Maria ter se aprumado mais o coronel pra capital e eu ficar ano e ano e ano e ano sem ler um livro só de mais poeta nenhum. Eu queria ser poeta, doutor! Imagine! Poeta Francisco Neto Correia! Ia falar das coisas da vida que nem ele, o Bernardo Guimarães. Ia ser fácil igual empinar papagaio por essas bandas daqui no mês de agosto, quando o vento sopra o dia inteirinho refrescando a quentura que o sol manda pra gente. 

Porque a vida é isso, doutor! A vida é a feitura dum poema. É aquele poeta aflito demais da conta, sapecando os dedos naquela máquina de escrever que nem um pianista faz enquanto toca sua música. A vida é um poeta, doutor! Cria histórias, estórias, arranca emoção do peito da gente, conta graça e desgraça, e faz a gente se enveredar pra todo canto, num mundaréu de vírgulas sem fim. E no finalzinho o poeta escreve: “E de vírgula em vírgula faz-se o ponto.” E o poema fica pronto. E o poeta cai mortinho da Silva!

Ah, doutor! Mas eu ia falar demais das coisas da vida se eu fosse um poeta! De morte não. De morte a gente não tem muita coisa pra falar, a não ser pra contar casos de assombração pra assustar a meninada em noites de lua cheia. Fora isso, ia escrever era letra nenhuma pra falar de morte. Porque eu ia ser poeta. E a morte, doutor! 

A morte é o poema pronto.