sexta-feira, 10 de março de 2023

O que ficou





o palhaço chora atrás da arena
chora a partida da morena
que desde quando entrou em cena
era o amor que eu nunca vi


o poeta inventa versos, acabado
não há mais tom exagerado
só a beleza de um passado
história linda que eu vivi

a criança chora descontente
se enfurece tão carente
em desespero não entende
qual o sentido do partir


o homem cala desolado
não há mais graça, obrigado
tenta seguir descompensado
até a hora de dormir.

sexta-feira, 14 de janeiro de 2022

Dom Riobaldo




Felinos. Demorei um tanto pra fazer amizade. Foi há três ou quatro anos.  Quando larguei mão de medo, comecei a projetar um bichinho manso e brincalhão que roçava a cabeça nas minhas pernas de quando em quando, querendo algum tipo de qualquer coisa, até dividir. 

Minha primogênita foi a gata Christie. Adotamos de um lar de BH. Cunhada que trouxe. Ela e uma irmãzinha. A irmãzinha ficou com a sogra. E a gata Christie era uma lindeza: Pêlos branquinhos e muitos, com chamuscadas de cinza claro de tempo em tempo – a do rosto se destacava à esquerda, circundando os olhos azuis, clarinhos que nem as águas das praias de areia branca que já vi, das salgadas. Uma boniteza de ficar olhando, de rabo grosso e peludo.

Tomou sumiço muito rápido. Nunca foi sociável, não me lembro de ter pedido carinho um dia. Era esquiva de carinho, de socialização. Cresceu um tantinho e já passava o dia no telhado. Às vezes a noite também. Eu tentava afeto, mas não dava. Até que um dia ela voltou mais não, lá de cima. Faz uns três anos, coisa disso. Procuramos até. Flavinha (pouco tempo desses, coisa nem de ano e meio), chegou em casa e disse que tinha visto a bichinha na rua. Chamou sem resposta. A gata correu. Mas continuava bonita, bem cuidada, peluda. Família tinha, certeza. Ouvi tudinho e decretei sentença ao relato: coisa da cabeça dela - saudade que acontece.

Mas eu queria insistir nas tentativas de amizade com os bichanos, quantas viessem e fossem – a vida é um entra e sai danado! Achei interessante esse negócio de desapego, de foda-se o que você espera de mim. Então projetei Riobaldo. Melhorei na tela mental e ele apareceu pra adoção pouco tempo depois, coisa nem de uma novena inteira, do jeitinho que era mesmo no meu querer: pretinho todo, de olhos grandes amarelados. Carinhoso, brincalhão e destemido (corria atrás de Lara e Luna antes de a Lua ter nascido cheia pra ele pela segunda vez depois de um tanto). Riobaldo passava o dia empoleirado no meu ombro ou na minha coxa enquanto eu corria atrás do de comer, porque trabalho tem que ter sim, mas sem dar trabalho. Cabia quase que na palma da minha mão, tempos aqueles de filhote: amizade que eu queria foi ali!

Janeiro é mês dele: duas voltas ao redor da brilhosa, o Sol, ele vai fechar. E já me ensinou um tanto bom! Meu medo dos felinos, aquela coisa que a gente costuma sentir quando desconhece e é desconexo foi-se embora, se escafedeu. Veio uma admiração profunda, curiosa, custosa. Consequência disso a ternura, filha bastarda do amor. Foi-se eu de antes, nasci outrinho novo, doidinho de saber das coisas mais.

Hoje são sete aqui em casa: Riobaldo, Diadorim, Fumaça, Marruá, Sagan, Bebelo e Deboa. O Deboa é de boa mesmo e sempre foi, ele é o próprio homônimo. Bebelo era Virgulino, mas Guimarães venceu Lampião no final das contas, por bairrismo ou amor ao imortal talvez – é que O Grande Sertão é mais bonito nos livros às vezes e, aqui em casa, nosso sertão fala uai, coisa labuta essa de desacostumes – e não obstante, convenhamos, Zé Bebelo é, de fato, velocidade da luz e metro e meio mais cativante que o Rei do Cangaço - matou só no pensar da gente, não fez de vontade. Sagan também corresponde com sua alcunha, o danado: desbravador. Alcunha dois: Frajola, que nem! Marruá também tem nome que é seu, só que um desastre de estabanada. Marruá é uma Juma tresloucada, tipo igual assim. Fumaça é o único pretinho que veio e que tem consigo todos os trejeitos de Riobaldo. Um tanto cismarento batizei o refugo: Dom Riobaldo II Francisco de Gandhi do Pinlar, vulgo Fumaça. Herdeiro único de Riobaldo I, cismo quantas vezes tiver número! Aliás - perdão cronologia - deveria ter contado bem lá no início desta prosa que Riobaldo nasceu Dom Riobaldo I Antônio de Jesus da Palma. Sim, fui eu que inventei as denominações e heranças arcaicas aqui. Nada mais justo, pois não eram reis do Egito os felinos certa feita? Pois os meus reis são reis tupiniquins e reis tupiniquins não costumam ser destronados - sobrenomes são gravetos que alimentam a fogueira (desconheço situação desta de destrone ou desnome, pelo menos desde a época que os portugas se mandaram do quinto dos infernos - enxergo semelhança entre Clarice e Carlota, esse tal do creditar sem aval). Por fim, a mãe de todos – menos de Riobaldo Antônio – é Diadorim. Chegou do nada aqui em casa, veio do quintal dia bobo desses de sem muita aflição, chegou ganhando espaço, pedindo carinho, cismada com Lara e Luna, ela veio assim. Ficou e ganhou barriga, acho que nem ano inteiro tinha feito. Riobaldo já era castrado - mas sei não - Fumaça que o diga.

sábado, 25 de dezembro de 2021

Deus me Livre!




Deus me livre!
Frase comum do meu cotidiano que cria a sensação equivocada de minha crença em Deus. Não que eu não acredite na existência de Deus. Eu apenas desconfio dela. E essa desconfiança me libera da condição de ser um ser ateu. Agnóstico? Tudo bem, se rótulos se fazem necessários.

Acontece que sou desprovido de quase todas as certezas do mundo. As verdades, penso, são as mentiras que mais nos convém, enquanto as certezas nos limitam e nos impossibilitam alçar voos mais longínquos na imensidão do universo, mergulhos mais distantes nas profundezas do oceano, viagens inimagináveis no vasto e desconhecido cosmo que é a mente humana. Para cada certeza, infinitas dúvidas: estrelas nascendo de nebulosas magníficas, são as questões e divagações que coabitam nosso pensar.
As verdades são perigosas e a necessidade de se crer num salvador já matou milhões e milhões e milhões de inocentes num holocausto produzido pela propaganda disseminada sem nenhum escrúpulo, pudor ou piedade em prol de interesses escusos, sombrios, egocêntricos, malditos – a vontade exacerbada de poder! No final das contas a culpa é um bolo gigantesco e amargo: os primeiros e mais generosos pedaços cabem aos mentores, disseminadores e produtores da desgraça feita, enquanto as demais fatias são distribuídas aos crentes, aos braços cruzados, às bocas caladas, aos preguiçosos de pensar e aos que simplesmente não as rejeita.
Em noites como essa, em que a mente acelera e as palavras se infinitam aqui dentro – desconexas e despretensiosas – eu simplesmente as deixo nascer do jeito que vieram: um texto cheio de placenta, sangue e excremento. Apenas corto o cordão umbilical e elas estão livres e sozinhas, prontas para serem interpretadas a mil modos, a mil vidas, a mil crenças e descrenças.
Tranco a porta da sala.
Apago as luzes.
E vou dormir, tentando rejeitar a fatia daquele bolo amargo.
Sim!
Porque tem bolo pra todo mundo – tem bolo pra todos nós! E muitos morreram, morrem e ainda morrerão – engasgados.

quarta-feira, 25 de novembro de 2020

Chuva no Sertão




Quando chove no sertão

E quando é frio de molhado
E rapacuia fala alto
E lampião quase apagado

Árvore dá suspiro de ver
Terra tem cheiro de preguiça
Assombração finge de vento
Troveja, cutuca, atiça

Quando chove no sertão

É o que não tem
Que acontece

quarta-feira, 6 de maio de 2020

Pó de Estrelas

 




                  Não durmo.

                Esta noite está mais bonita por aqui. Longe da cidade a gente avista um céu melhor. Olho algumas vezes para a barraca, mas ela não me é nada convidativa agora. Prefiro o céu e esse barulhinho de grilos que não se calam. E esse papel que começa a receber minhas ideias.

                Às vezes venho aqui, tento passar pelo menos uma noite de sexta-feira por mês assim (nunca consegui ser fiel a isso, mas...) eu e minhas coisas, no meio de uma paisagem sertaneja que me desacelera. Trago papel e caneta, cigarro de palha, café, meu telescópio miúdo, barraca, um colchãozinho, lanterna, um trem de comer e  binóculos pra ver o escuro mais de perto. No lugar do cobertor, a cachaça (pra esquentar o peito quando agoniza em devaneios). O celular serve pra fazer tocar os mantras que às vezes ouço aqui. O facão às vezes uso, quando animo uma fogueira e não trago o lampião que ganhei do sogro. Tem a gaita, presente também, que tento tocar quando a paz demora a vir. Mas quando ela chega, eu não queria estar em outro lugar! Quando ela chega eu gosto tanto de mim que chego a me perdoar por todos os deslizes de até hoje, de verdade!

                Esta noite ela está aqui comigo. E tão logo chegou, corri até o carro pra buscar o de escrever: Papel e caneta. Paz e solidão. Sossego e embriaguez ligeira. Da cachaça, do céu, do mato, do amor.

                Consegui enxergar Betelgeuse bonita hoje, lá no ombro direito de Órion! Por anos e anos eu dizia ser minha constelação preferida, porque era a única que eu enxergava com clareza! Quase vinte anos atrás eu vi o Caçador por completo. Guiado por seu cinturão, Alnitak, Alnilam e Mintaka, eu senti uma sensação gostosa de plenitude quando Órion se desenhou por completo. Lembro como se fosse hoje!

                Hoje eu me interesso mais pelas pequenas coisas em si do que pelo conjunto que elas formam. Hoje me apaixonei mais pela estrela “pequena gigante vermelha”, Betelgeuse! E me arrepiei quando pensei que milhões de conjuntos de coisas formam aquela luz que brilhou bonita no meu telescópio...

                Betelgeuse! A estrela que está para explodir numa supernova a qualquer momento. Pode ser essa noite, pode ser daqui cem mil anos ou muito mais (em medidas astronômicas, este tempo é só um sopro).

                Morrer!

                Eis o destino das estrelas!

                Morrer pra fazer surgir mais vida. Morrer pra alimentar mais vida. Morrer pra retribuir. E continuar... apesar de incerto, o destino é tão certo! A gente morre e vira adubo pras árvores que nos forneceram o ar vital durante toda nossa existência. Que retribuição mágica, que sabedoria da natureza essa de ser grato mesmo sem se ser. O acerto é inevitável no final das contas.

                Fez barulho no buritizeiro que fica aqui pertinho, não deu pra ver, mas pensei um gavião carijó (tenho aprendido um pouquinho dos passarinhos, tanto querer voar que nem eles).

               Aconteceu que um dia, numa pousadinha, eu estava deitado na rede e pousou um joão-bobo. Fui saber depois que esse pássaro fica paralisado quando se assusta, por isso o nome. Naquele dia ele pousou sobre o suporte do telhado, por cima da rede onde eu estava e ficou ali parado, bem perto de mim. E houve uma conexão! Ele estava paralisado de medo, eu senti. E consegui enxergar aquela situação a partir da perspectiva dele! Como ele me enxergava, o que sentia sobre mim, o que aquele encontro significava pra ele. Com o pensamento, pedi para se acalmar. Disse que estava tudo bem, que a gente morava no mesmo mundo e que eu não faria mal a ele. Agradeci por aquele encontro e disse que um dia viveríamos intrinsecamente juntos, como iguais, em harmonia... e todo medo do que a gente não conhece seria extinto, pois, de verdade, não há o que temer. Por fim, pedi para que voasse, voasse bonito, voasse alto, tão alto quanto quisesse e cantasse bonito, celebrando a mágica de ser o que se é. Ele continuou me observando por mais uns segundos, cantou um cantinho fino e pouco, balançou a cabeça e voou.

                Tenho tentado! Em cada encontro tento sentir a perspectiva do outro. E tô descobrindo e me certificando cada vez mais, que realmente, conforme algumas filosofias alternativas, não há o outro. É tudo junto, mesmo tão distante! É tudo igual, mesmo tão exacerbadamente diversificado! São os mesmos sentimentos motores, o mesmo anseio de vida, a mesma energia vital! Pó! Pó de estrelas...

                O céu está tão bonito! Daqui parece que ele chegou mais perto. Vez em quando um lixo espacial ou um meteorito desavisado dão o ar da graça, as estrelas cadentes que tanto amo! Lembro de um sonho que tive certa vez... Eu estava na roça com meu primo, perto da lagoa à noite, uma estrela cadente linda e enorme se fez avistar. Era tão bonita e foi tão bonito o sonho! No outro dia eu estava lá com meu primo, na beira da lagoa à noite, cabeça baixa pensando nas coisas. E ele gritou: “Olha!” e sem olhar eu respondi: “Você está vendo uma estrela cadente...”.

                Sonhos, sonhos, sonhos...

                Imagino que o maior dos meus é que, numa noite como esta, sozinho no meio do mato, embasbacado pela grandeza do universo, uma luz brilhe mais forte e venha descendo, descendo de mansinho pra não me assustar muito, vai chegando cada vez mais perto, cada vez mais intensa e brilhante. De repente consigo enxergar a silhueta do que parece ser uma nave espacial, mas que não se parece com nada, absolutamente nada do que eu tenha visto até hoje. Nem as formas, nem as cores, nem os sons que emana. Esse objeto luminoso aos poucos se apaga, fica a poucos metros de mim. Lá de dentro sai um serzinho, meio cinza esverdeado, cabeça grande, mãos e braços longos, corpo esguio – este sim, quase do jeito que imaginei em muitos devaneios – fica parado me observando e eu consigo enxergar aquela situação através da perspectiva dele. Com o pensamento, ele pede para que eu me acalme. Diz que está tudo bem, que a gente mora no mesmo mundo e que ele não faria mal a mim. Agradece por aquele encontro e diz que um dia viveríamos intrinsecamente juntos, como iguais, em harmonia... e todo medo do que a gente não conhece seria extinto, pois, de verdade, não há o que temer. Por fim, pede para que eu voe, voe bonito, voe alto, tão alto quanto queira e cante bonito, celebrando a mágica de ser o que sou. Ele continua me observando por mais uns segundos, vira-se de costas, entra em sua nave e voa...

segunda-feira, 27 de abril de 2020

Sobre verdades



 

A verdade era a última criança que a gente encontrava no pique-esconde, lá na década de 80.

O pique-esconde acho, acabou. 

Mas a verdade ainda é a última criança que a gente encontra no pique-esconde.

segunda-feira, 6 de maio de 2019

A Via Láctea




 Ouvi uma voz tão triste que logo me disse assim:

Que se eu continuasse assim estaria tão perto do fim.
A Terra pequenininha e nos beijos de uma Flavinha
Sobreviveria enfim.

Num planeta tão distante, numa voz reconfortante
Você acredita em mim?
Uma luz muito brilhante, uma estrela, um diamante.
Não dá pra explicar assim

Como explicar um momento
Uma visão, um sentimento
Sentir no céu esse lamento
Você acredita em mim?

Se o mundo gira só por dinheiro
Se amor que vale não é verdadeiro
Estamos mesmo tão perto do fim

Se sua luz é o que me guia
É uma carta de alforria

E você ainda acredita em mim?