o palhaço chora atrás da arena
chora a partida da morena
que desde quando entrou em cena
era o amor que eu nunca vi
a criança chora descontente
se enfurece tão carente
em desespero não entende
qual o sentido do partir
o palhaço chora atrás da arena
chora a partida da morena
que desde quando entrou em cena
era o amor que eu nunca vi
a criança chora descontente
se enfurece tão carente
em desespero não entende
qual o sentido do partir
Felinos. Demorei um tanto pra fazer amizade. Foi há três ou quatro anos. Quando larguei mão de medo, comecei a projetar um bichinho manso e brincalhão que roçava a cabeça nas minhas pernas de quando em quando, querendo algum tipo de qualquer coisa, até dividir.
Minha primogênita foi a gata Christie. Adotamos de um lar de BH. Cunhada que trouxe. Ela e uma irmãzinha. A irmãzinha ficou com a sogra. E a gata Christie era uma lindeza: Pêlos branquinhos e muitos, com chamuscadas de cinza claro de tempo em tempo – a do rosto se destacava à esquerda, circundando os olhos azuis, clarinhos que nem as águas das praias de areia branca que já vi, das salgadas. Uma boniteza de ficar olhando, de rabo grosso e peludo.
Tomou sumiço muito rápido. Nunca foi sociável, não me lembro de ter pedido carinho um dia. Era esquiva de carinho, de socialização. Cresceu um tantinho e já passava o dia no telhado. Às vezes a noite também. Eu tentava afeto, mas não dava. Até que um dia ela voltou mais não, lá de cima. Faz uns três anos, coisa disso. Procuramos até. Flavinha (pouco tempo desses, coisa nem de ano e meio), chegou em casa e disse que tinha visto a bichinha na rua. Chamou sem resposta. A gata correu. Mas continuava bonita, bem cuidada, peluda. Família tinha, certeza. Ouvi tudinho e decretei sentença ao relato: coisa da cabeça dela - saudade que acontece.
Mas eu queria insistir nas tentativas de amizade com os bichanos, quantas viessem e fossem – a vida é um entra e sai danado! Achei interessante esse negócio de desapego, de foda-se o que você espera de mim. Então projetei Riobaldo. Melhorei na tela mental e ele apareceu pra adoção pouco tempo depois, coisa nem de uma novena inteira, do jeitinho que era mesmo no meu querer: pretinho todo, de olhos grandes amarelados. Carinhoso, brincalhão e destemido (corria atrás de Lara e Luna antes de a Lua ter nascido cheia pra ele pela segunda vez depois de um tanto). Riobaldo passava o dia empoleirado no meu ombro ou na minha coxa enquanto eu corria atrás do de comer, porque trabalho tem que ter sim, mas sem dar trabalho. Cabia quase que na palma da minha mão, tempos aqueles de filhote: amizade que eu queria foi ali!
Janeiro é mês dele: duas voltas ao redor da brilhosa, o Sol, ele vai fechar. E já me ensinou um tanto bom! Meu medo dos felinos, aquela coisa que a gente costuma sentir quando desconhece e é desconexo foi-se embora, se escafedeu. Veio uma admiração profunda, curiosa, custosa. Consequência disso a ternura, filha bastarda do amor. Foi-se eu de antes, nasci outrinho novo, doidinho de saber das coisas mais.
Hoje são sete aqui em casa: Riobaldo, Diadorim, Fumaça, Marruá, Sagan, Bebelo e Deboa. O Deboa é de boa mesmo e sempre foi, ele é o próprio homônimo. Bebelo era Virgulino, mas Guimarães venceu Lampião no final das contas, por bairrismo ou amor ao imortal talvez – é que O Grande Sertão é mais bonito nos livros às vezes e, aqui em casa, nosso sertão fala uai, coisa labuta essa de desacostumes – e não obstante, convenhamos, Zé Bebelo é, de fato, velocidade da luz e metro e meio mais cativante que o Rei do Cangaço - matou só no pensar da gente, não fez de vontade. Sagan também corresponde com sua alcunha, o danado: desbravador. Alcunha dois: Frajola, que nem! Marruá também tem nome que é seu, só que um desastre de estabanada. Marruá é uma Juma tresloucada, tipo igual assim. Fumaça é o único pretinho que veio e que tem consigo todos os trejeitos de Riobaldo. Um tanto cismarento batizei o refugo: Dom Riobaldo II Francisco de Gandhi do Pinlar, vulgo Fumaça. Herdeiro único de Riobaldo I, cismo quantas vezes tiver número! Aliás - perdão cronologia - deveria ter contado bem lá no início desta prosa que Riobaldo nasceu Dom Riobaldo I Antônio de Jesus da Palma. Sim, fui eu que inventei as denominações e heranças arcaicas aqui. Nada mais justo, pois não eram reis do Egito os felinos certa feita? Pois os meus reis são reis tupiniquins e reis tupiniquins não costumam ser destronados - sobrenomes são gravetos que alimentam a fogueira (desconheço situação desta de destrone ou desnome, pelo menos desde a época que os portugas se mandaram do quinto dos infernos - enxergo semelhança entre Clarice e Carlota, esse tal do creditar sem aval). Por fim, a mãe de todos – menos de Riobaldo Antônio – é Diadorim. Chegou do nada aqui em casa, veio do quintal dia bobo desses de sem muita aflição, chegou ganhando espaço, pedindo carinho, cismada com Lara e Luna, ela veio assim. Ficou e ganhou barriga, acho que nem ano inteiro tinha feito. Riobaldo já era castrado - mas sei não - Fumaça que o diga.
Deus me livre!
Frase
comum do meu cotidiano que cria a sensação equivocada de minha crença em Deus. Não
que eu não acredite na existência de Deus. Eu apenas desconfio dela. E essa
desconfiança me libera da condição de ser um ser ateu. Agnóstico? Tudo bem, se
rótulos se fazem necessários.
E quando é frio de molhado
E rapacuia fala alto
E lampião quase apagado
Árvore dá suspiro de ver
Terra tem cheiro de preguiça
Assombração finge de vento
Troveja, cutuca, atiça
Quando chove no sertão
É o que não tem
Que acontece
Não durmo.
Esta
noite está mais bonita por aqui. Longe da cidade a gente avista um céu melhor.
Olho algumas vezes para a barraca, mas ela não me é nada convidativa agora.
Prefiro o céu e esse barulhinho de grilos que não se calam. E esse papel que
começa a receber minhas ideias.
Às
vezes venho aqui, tento passar pelo menos uma noite de sexta-feira por mês
assim (nunca consegui ser fiel a isso, mas...) eu e minhas coisas, no meio de
uma paisagem sertaneja que me desacelera. Trago papel e caneta, cigarro de
palha, café, meu telescópio miúdo, barraca, um colchãozinho, lanterna, um trem
de comer e binóculos pra ver o escuro
mais de perto. No lugar do cobertor, a cachaça (pra esquentar o peito quando
agoniza em devaneios). O celular serve pra fazer tocar os mantras que às vezes
ouço aqui. O facão às vezes uso, quando animo uma fogueira e não trago o
lampião que ganhei do sogro. Tem a gaita, presente também, que tento tocar
quando a paz demora a vir. Mas quando ela chega, eu não queria estar em outro
lugar! Quando ela chega eu gosto tanto de mim que chego a me perdoar por todos
os deslizes de até hoje, de verdade!
Esta
noite ela está aqui comigo. E tão logo chegou, corri até o carro pra buscar o
de escrever: Papel e caneta. Paz e solidão. Sossego e embriaguez ligeira. Da
cachaça, do céu, do mato, do amor.
Consegui
enxergar Betelgeuse bonita hoje, lá no ombro direito de Órion! Por anos e anos
eu dizia ser minha constelação preferida, porque era a única que eu enxergava
com clareza! Quase vinte anos atrás eu vi o Caçador por completo. Guiado por
seu cinturão, Alnitak, Alnilam e Mintaka, eu senti uma sensação gostosa de
plenitude quando Órion se desenhou por completo. Lembro como se fosse hoje!
Hoje eu
me interesso mais pelas pequenas coisas em si do que pelo conjunto que elas
formam. Hoje me apaixonei mais pela estrela “pequena gigante vermelha”,
Betelgeuse! E me arrepiei quando pensei que milhões de conjuntos de coisas
formam aquela luz que brilhou bonita no meu telescópio...
Betelgeuse!
A estrela que está para explodir numa supernova a qualquer momento. Pode ser
essa noite, pode ser daqui cem mil anos ou muito mais (em medidas astronômicas,
este tempo é só um sopro).
Morrer!
Eis o
destino das estrelas!
Morrer
pra fazer surgir mais vida. Morrer pra alimentar mais vida. Morrer pra
retribuir. E continuar... apesar de incerto, o destino é tão certo! A gente
morre e vira adubo pras árvores que nos forneceram o ar vital durante toda
nossa existência. Que retribuição mágica, que sabedoria da natureza essa de ser
grato mesmo sem se ser. O acerto é inevitável no final das contas.
Fez
barulho no buritizeiro que fica aqui pertinho, não deu pra ver, mas pensei um
gavião carijó (tenho aprendido um pouquinho dos passarinhos, tanto querer voar
que nem eles).
Aconteceu que um dia, numa pousadinha, eu estava deitado na rede e
pousou um joão-bobo. Fui saber depois que esse pássaro fica paralisado quando
se assusta, por isso o nome. Naquele dia ele pousou sobre o suporte do telhado,
por cima da rede onde eu estava e ficou ali parado, bem perto de mim. E houve
uma conexão! Ele estava paralisado de medo, eu senti. E consegui enxergar
aquela situação a partir da perspectiva dele! Como ele me enxergava, o que
sentia sobre mim, o que aquele encontro significava pra ele. Com o pensamento,
pedi para se acalmar. Disse que estava tudo bem, que a gente morava no mesmo
mundo e que eu não faria mal a ele. Agradeci por aquele encontro e disse que um
dia viveríamos intrinsecamente juntos, como iguais, em harmonia... e todo medo
do que a gente não conhece seria extinto, pois, de verdade, não há o que temer.
Por fim, pedi para que voasse, voasse bonito, voasse alto, tão alto quanto
quisesse e cantasse bonito, celebrando a mágica de ser o que se é. Ele continuou
me observando por mais uns segundos, cantou um cantinho fino e pouco, balançou
a cabeça e voou.
Tenho
tentado! Em cada encontro tento sentir a perspectiva do outro. E tô descobrindo
e me certificando cada vez mais, que realmente, conforme algumas filosofias
alternativas, não há o outro. É tudo junto, mesmo tão distante! É tudo igual,
mesmo tão exacerbadamente diversificado! São os mesmos sentimentos motores, o
mesmo anseio de vida, a mesma energia vital! Pó! Pó de estrelas...
O céu
está tão bonito! Daqui parece que ele chegou mais perto. Vez em quando um lixo
espacial ou um meteorito desavisado dão o ar da graça, as estrelas cadentes que
tanto amo! Lembro de um sonho que tive certa vez... Eu estava na roça com meu
primo, perto da lagoa à noite, uma estrela cadente linda e enorme se fez
avistar. Era tão bonita e foi tão bonito o sonho! No outro dia eu estava lá com
meu primo, na beira da lagoa à noite, cabeça baixa pensando nas coisas. E ele
gritou: “Olha!” e sem olhar eu respondi: “Você está vendo uma estrela
cadente...”.
Sonhos,
sonhos, sonhos...
Imagino
que o maior dos meus é que, numa noite como esta, sozinho no meio do mato,
embasbacado pela grandeza do universo, uma luz brilhe mais forte e venha
descendo, descendo de mansinho pra não me assustar muito, vai chegando cada vez
mais perto, cada vez mais intensa e brilhante. De repente consigo enxergar a
silhueta do que parece ser uma nave espacial, mas que não se parece com nada,
absolutamente nada do que eu tenha visto até hoje. Nem as formas, nem as cores,
nem os sons que emana. Esse objeto luminoso aos poucos se apaga, fica a poucos
metros de mim. Lá de dentro sai um serzinho, meio cinza esverdeado, cabeça
grande, mãos e braços longos, corpo esguio – este sim, quase do jeito que
imaginei em muitos devaneios – fica parado me observando e eu consigo enxergar
aquela situação através da perspectiva dele. Com o pensamento, ele pede para
que eu me acalme. Diz que está tudo bem, que a gente mora no mesmo mundo e que
ele não faria mal a mim. Agradece por aquele encontro e diz que um dia
viveríamos intrinsecamente juntos, como iguais, em harmonia... e todo medo do
que a gente não conhece seria extinto, pois, de verdade, não há o que temer.
Por fim, pede para que eu voe, voe bonito, voe alto, tão alto quanto queira e
cante bonito, celebrando a mágica de ser o que sou. Ele continua me observando
por mais uns segundos, vira-se de costas, entra em sua nave e voa...
A verdade era a última
criança que a gente encontrava no pique-esconde, lá na década de 80.
O pique-esconde acho, acabou.
Mas a verdade ainda é a última criança que a gente encontra no pique-esconde.
Ouvi uma voz tão triste que logo me disse assim: