Pois é, moço! Se incomode não! Pode chegar mais perto desse velho aqui, que minha voz já não alcança mais tão longe! Sente aqui neste toco de andiroba. Se acomode que cabemos nós dois e ainda sobra mais de palmo e meio de mão pra colocar o café que minha dona já vem trazendo...
Eu bem vi que o moço andava cismarento quando cruzou a beira do córrego olhando pro chão. Logo pensei: “É a tristeza que pesa a cabeça da gente rumando as vistas pros pés...”
Pode sossegar que eu não te chamei aqui pra te encher de perguntas não, moço. Quero só bater um dedinho de prosa e mostrar pro moço que a gente tem que andar é com a cabeça erguida, que nem seriema caçando cobra no pasto! Esse velho aqui já viveu muito pra saber reconhecer um caboclo triste. Tristeza de vez em quando não faz mal não senhor! Imagina se a gente nunca tivesse se sentido triste na vida? Que valor teria a felicidade, não é mesmo? Mas essa tristeza do moço é judiação. Eu não sei o que passa na sua cachola, mas sei que essa tristeza não está fazendo bem pro moço...
Uma vez eu conheci um menino assim, quase que nem você. Era filho de um compadre meu já falecido, que Deus o tenha! Eu vi o menino crescer. Nem tinha ganhado pelo ainda, já cismou de virar médico. Era o sonho dele. Menino bom, coração de mais de alqueire e meio! Vivia dizendo pro povo todo que ainda ia virar doutor.
E assim foi.
Enquanto a molecada brincava de bola, nadava na represa, roubava fruta no pomar dos vizinhos, caçava inhambu, o menino ficava lá na Igreja mais o padre Chico decorando a tabuada, aprendendo as letras...
Passou a infância assim, o menino! Enquanto os amigos aprendiam a fazer e armar arapuca, ele aprendia os estudos. Meu compadre falecido não tinha muito dinheiro. E pra ele esse negócio de estudar era coisa de vagabundo. Tratou logo de botar o filho pra ajudar na lida. Eita, vida dura que meu compadre deu pro menino! Acordava antes do sol, corria pro curral mais o pai e depois ficava o resto da manhã na plantação. O que a turma fazia no dia inteiro, o menino tinha que fa zer na matina pra poder ir pra escola do arraial depois do comer.
Mas você acha que ele desanimou? Que nada! O menino tinha o negócio de ser médico na cachola e ninguém arrancava isso de lá! O padre Chico tinha ensinado que pra ser doutor, ele tinha que estudar. O compadre tinha falado que se quisesse estudar tinha que trabalhar dobrado na matina. O menino estufou o pei to franzino e largou mão de tudo pra poder ser doutor.
Mas ele só andava assim, de cabeça virada pro chão. Quando a gente perguntava, ele respondia que só ia ser feliz mesmo quando virasse doutor. Aí ele ia tomar prumo! Eu lembro como se fosse hoje, da época em que a molecada começou a usar calça, os fiozinhos de barba crescendo, a voz engrossando! Era uma namoração no arraial que dava gosto de ver! Já toquei muito moleque aqui do meu terreiro que vinha roubar as flores da minha dona pra fazer serenata! O menino foi o único deles que nunca apareceu.
Nessa época ele tinha começado a estudar na capital, porque não tinha mais escola pra ele por aqui. Trabalhava mais o pai o dia inteiro na roça. De tardezinha subia no caminhão do Seu Antônio, que era dono dessas terras todas que você pode avistar aí, do outro lado do córrego.
O caminhão levava o menino pra capital e ele só voltava tarde da noite, junto com o padre Chico que ia todo dia de semana prosear mais o bispo na sede da Congregação.
Enquanto os amigos começavam a conhecer os encantos do amor, ele chegava de noitão e se trancava no quarto com a lamparina acesa, que era pra colocar os estudos em dia. Mas cadê que ele desanimou? O menino fez foi ficar cada vez mais inteligente, com um palavreado daqueles que a gente custa a entender quando escuta. Às vezes a gente nem entende, só acha bonito aquele monte de palavra diferente pra falar das coisas iguais.
Ah, moço! Enquanto o compadre fazia desfeita com o desejo do filho, a comadre ficava era alegre demais com a ideia de ter um filho doutor! Mas o coitado do menino, a cada dia que passava, baixava mais a cabeça pra vida. Parecia que a felicidade dele estava no chão, porque era só pra lá que ele olhava, pro momento em que ele virasse doutor.
E assim foi.
O menino, crescido, andava com o queixo no peito. Os amigos achavam esquisito e acabaram deixando o pobre de lado. As mocinhas até que tentaram se engraçar, mas ele só aparecia pra missa de domingo e, cabeça baixa, não enxergava os olhares faceiros que recebia...
Ele não estava errado não. Se a gente tem um sonho, a gente tem mais é que perseguir esse sonho que nem a jaguatirica faz com a presa, sem desistir de jeito nenhum! Era de se admirar a perseverança do menino! A vontade de virar doutor era tão grande que ele superava tudo, enfrentava boi bravo no pasto sem chicote nem porrete, cortava mato virgem no peito se fosse preciso! Isso é coisa bonita de ver nas pessoas! E isso o menino tinha de sobra, vontade de chegar lá! Vontade de realizar o sonho e ser feliz.
Ele não estava errado não. O sonho era que estava errado. O sonho não pode ficar no chão, pra onde o menino olhava. Lugar de sonho é no alto, perto de Deus!
Felicidade não é troço que a gente conquista, que nem sonho. Felicidade é quando a gente acorda achando a vida boa, mesmo depois de o sonho ter terminado, se é que o moço entende o que esse velho aqui está querendo dizer...
Mas eu estava falando do menino. E não é que mesmo olhando pro chão, sem amigos e sem nenhuma namorada, trabalhando duro com o pai na roça, dormindo pouco e com os dias cada vez mais difíceis, o danado conseguiu entrar pra faculdade?
E assim foi.
A comadre fez uma festança! O compadre começou a levar a sério a história do filho e até vendeu um pedaço de terra que era pra comprar uma moto pro menino poder ir e voltar da capital, porque o padre Chico já não estava muito bem de saúde e não ia ter com o bispo como antes...
Nessa época o menino que já não era mais menino sumiu! Olhe, eu passava era ano inteiro sem saber notícia. Mas quando ele aparecia, aparecia do mesmo jeitinho... cabeça pesada olhando pro chão, perseguindo o sonho dele sem enxergar a beleza das moças, as cores das flores, os amigos se casando, a meninada nova que ia aparecendo Eita, que dava vontade era de dar uma sacudida no rapaz pra ver se ele botava o sonho no lugar! Sonho é sonho, moço! Sonho a gente corre atrás e conquista!
Felicidade, se a gente corre atrás, foge que nem pardal! Felicidade não é o moleque empinando a pipa. Felicidade é o vento que deixa ela lá em cima e ainda sopra seu rosto, se é que o moço entende o que ess e velho aqui está querendo dizer...
Mas eu estava falando do menino...
Ah, mas teve um dia que eu fiquei foi muito admirado com a inteligência dele! Já ia pra quase quatro anos de estudos na faculdade, quando minha dona arrumou uma gripe que nem a benzeção da Dona Rita adiantou pra curar! Nesse dia ele apareceu aqui e em dois tempos deu um jeito na minha velha.
Aproveitei pra prosear um pouco com ele, que nem tô fazendo com o moço agora, sentado nesse toco de andiroba molhando a palavra com café...
Eita, que dava gosto de ouvir o rapaz falar! Dava notícias da capital como se a gente tivesse escutando no rádio! Falava que apesar de tantos problemas por lá, ficava encantado com o punhado de gente boa que conhecia. Tinha ladrão, tinha assassino, tinha doente pra mais de metro. Mas tinha muita gente boa, ele dizia! Gente que ajudava as pessoas na rua, lugares que abrigavam mendigos, jovens que visitavam as crianças doentes nos hospitais, vestidos de palhaço! Ele falava muito sobre valores. Não são valores de dinheiro não, moço. Valores humanos, ele falava! Falava que havia aprendido muito sobre isso na faculdade. E eu achava aquilo uma beleza que só! Eu nem sonhava que ser boa gente, fazer o bem e andar direito com as responsabilidades tinha nome. Mas tem, moço! Guarde isso na cachola, valores humanos!
Mas eu estava dizendo... naquele dia fiquei encantado com a inteligência dele! Mas mesmo assim, com toda inteligência e bondade no coração, ele continuava com aquela cabeça abaixada, correndo atrás do sonho e esperando chegar o dia de ser feliz.
Isso dava pena de ver! Tive vontade de avisar o rapaz, de explicar a ele que felicidade não tem data pra chegar. Mas fiquei quietinho, porque se ele tinha aprendido tanta coisa bonita na faculdade, ainda haveriam de ensinar isto a ele por lá. Ainda haveriam de ensinar que felicidade não está na água fresca que a gente bebe, mas na vontade de beber.
O moço está entendendo o que esse velho aqui está querendo dizer?
Enquanto eu via aquela molecada crescida, Tiãozinho casado com Jussara, Nando reformando o armazém do pai pra tocar a vida com a Mariana, os gêmeos de Toninho e Margarida começando a andar, eu raramente via o menino, que andava sempre sozinho de cabeça baixa correndo atrás do sonho como se a felicidade estivesse lá, no dia em que se tornasse doutor...
E assim foi.
O tempo continuou passando, embranqueceu meus cabelos e enrouqueceu minha voz. Eu e a patroa, que nunca na vida tivemos um filhotinho sequer, víamos a molecada crescendo, a molecada casando, a molecada nascendo. Quase nunca saímos daqui, moço! Nossa vidinha sempre foi gostosa e simples. Cada um é feliz de uma maneira, não é mesmo? Conheço caboclo da capital que só de pensar em levar a vida que levo já sente o coração pesar, do mesmo jeito que acontece com o meu, quando me imagino fora da minha terrinha. Coração é um só e cada um sabe onde ele bate melhor...
Hoje eu acompanho as notícias na televisão e fico admirado de ver como as coisas mudaram no mundo. Imagine se me contassem, quando eu era moleque, que inventariam um aparelhinho que você conversa com outra pessoa e a vê, mesmo ela estando lá pros lados do Japão? Minha Nossa Senhora! Eu ia dizer que isso era coisa do capeta, com o perdão da palavra!
É, moço! O ser humano é mesmo um bicho extraordinário demais. Aprende tanta coisa difícil, descobre tanta coisa fantástica, viaja pra Lua e manda máquina que nem trator de arar a terra pra outros planetas, mas tem dificuldade em conhecer a si mesmo. Olha que coisa interessante! Já descobriram curas para doenças incuráveis, mas passam noites em claro se falta dinheiro no bolso...
Mas eu estava falando do menino que virou doutor...
É, ele já virou doutor e faz tempo isso! Lembro do dia que a comadre veio toda contente convidar a mim e a minha dona pra festança que o compadre ia fazer. O menino havia conseguido! Perseguiu o sonho a vida inteira, enfrentou todas as dificuldades que encontrou no caminho, sem jamais desistir. Filho de lavrador simples, menino da roça, agora era médico na capital! Eita, orgulho danado!
Mas, olhe! Preste bastante atenção no que esse velho aqui vai lhe dizer... tem coisa mais bonita que a gente lutar e realizar um sonho, por mais difícil que ele possa parecer? Eu fico é muito admirado quando vejo histórias parecidas com a desse menino, filho do meu compadre, que Deus o tenha!
Perseverança, fé, coragem e força de vontade! Tudo isso sem desistir jamais! Venha o que vier, o caboclo chega lá! Leve o tempo que levar, o cabo clo chega lá!
Mas, preste atenção no velho aqui, moço! Isso não tem nada a ver com felicidade! A gente pode abrir mão de muita coisa na vida para perseguir um sonho, moço! Mas abrir mão da própria felicidade achando que ela estará lá quando o sonho for conquistado, é que nem matar passarinho com bodoque, coisa de menino que não sabe o que faz, que não conhec e o valor de uma vida...
A felicidade é coisa preciosa demais pra gente jogar pro futuro, onde vivem os sonhos! Quando a gente conquista um sonho, o peito enche de orgulho! O coração bate acelerado, realizado! A alegria é tanta que faz a gente chorar de emoção! Mas isso é passageiro, com o tempo a gente inventa novos sonhos...
Eu bem vi isso estampado no rosto do menino, quando chegou da capital com o canudo nas mãos! Mas na mesma noite, durante a festança que o compadre organizou, os olhos do doutor voltaram a mirar o chão e o povaréu todo ficou sem entender.
Então trate de levantar essa cabeça, moço! Você é novo demais para deixar qualquer coisa pesar sua cachola a ponto de andar com os olhos mirados ao chão. Seja lá o que for, jamais abaixe a cabeça para a vida, senão você não vai poder enxergar a beleza de tudo que está ao seu redor!
Porque felicidade não é que nem prenda que a gente ganha na quermesse, nem beijo da menina mais bonita, nem diploma que a gente conquista com suor, nem dinheiro que vem do trabalho. Não, moço! Felicidade é bem mais simples que isso...
Quando o doutor realizou seu sonho, ele descobriu o que era a felicidade! Era sentimento tão bom que parecia explodir no peito! Ah, se soubesse como aquilo era
bom, desde os tempos de moleque! Teria aproveitado mais os amigos, paquerado as mocinhas, teria aprendido a armar uma arapuca junto com a molecada.... essas coisas não tirariam o canudo de suas mãos. Ah, como aquele sentimento era gostoso!
Felicidade! Como ele pôde afastar esse sentimento de si por tantos anos em sua vida?
Foi aí que ele ficou cabisbaixo mais uma vez e o povo todo sem entender...
Pois olhe que interessante, moço!
No momento mais feliz de sua vida, o doutor olhou para trás e percebeu o mundaréu de coisas que deixou de fazer. No momento mais feliz de sua vida, o doutor descobriu que aquela felicidade não fazia parte apenas da concretização do seu sonho. No momento mais feliz de sua vida, o doutor descobriu que a felicidade era o próprio sonho e, na ânsia de chegar lá, não se apercebeu disso e viveu uma vida inteira em busca dela, sem notar que ela estava sempre ali, pronta para fazer-se sentir, seja numa brincadeira com a molecada, seja na pescaria com o pai ou na paquera com a menina bonita. Foi aí que, no momento mais feliz de sua vida, o doutor se sentiu infeliz.
E assim foi...